terça-feira, 31 de julho de 2007

A leitura da imagem fotográfica em sala de aula

Após o desenvolvimento da parte introdutória desta pesquisa, de seus objetivos e embasamento teórico, por exigência da especificidade pedagógica da graduação em Artes Visuais, propomos o desenvolvimento da leitura de obras da artista Rosângela Rennó a partir de interesses pessoais que surgiram de uma relação de empatia e estranhamento com seus trabalhos. Contudo, tal proposta de trabalho pode ser desenvolvida, em sala de aula e precisará ser redimensionada e adaptada ao contexto arte-educativo, podendo ser trabalhado com alunos do ensino médio. O texto em si, servirá como material referencial para a pesquisa de estudantes e professores. A fim de oferecer um referencial teórico relacionado com o campo da arte-educação, penso nesse trabalho a partir de alguns pontos que considero fundamentais para uma reflexão mais aprofundada no contexto educacional.

Todas as propostas a seguir trazem como premissa o desenvolvimento de um olhar mais apurado, ou seja mais analítico e crítico sobre a imagem fotográfica.

Segundo KELLNER[1], a crítica contribui para identificarmos focos de resistência e dominação dentro da cultura midiática a fim de, reforçarmos a luta por uma sociedade mais democrática. Tal fato, porém, implica a necessidade de um estudo cultural minucioso que revelará mídias repletas de ambigüidades e antagonismos, inerentes a uma investigação sociológica da imagem. Revelando a coexistência de conteúdos ideológicos diversos com diferentes focos de contestação que representam visões multiculturais específicas da contemporaneidade.

KELLNER desenvolve uma metodologia de análise crítica da cultura de mídia levando em conta a diversidade cultural e sugerindo uma leitura sócio-histórica, que atente para os focos de luta, de correntes variadas como, por exemplo,as perspectivas feministas, marxistas, raciais e a sua complexa formação. Bem como o aprofundamento ou o intercâmbio entre conhecimentos do campo da psicologia, da semiótica, da história, dentre outras ciências, a fim de, aprofundar o olhar através da utilização de pontos de vista variados e abarcar uma pluralidade de fatores.

Embora saibamos que o valor estético de uma obra não possa ser julgado ou reduzido apenas ao seu conteúdo, também não podemos ignorar que o objeto de arte por instituir-se como produto sociológico, não estará isento de ideologias, posições políticas ou morais, em sua gênese. Tal fato, levado em conta, agregará valores no momento da análise.

O referencial de Rosângela Rennó não deve ser entendido como obrigatório. Foi utilizado nesta pesquisa por relacionar-se com questões fulcrais que permeiam a imagem fotográfica e a imagem midiática no atual contexto da arte brasileira e por ilustrar o que atestamos anteriormente, como valor agregado de contestação social inserido na obra de arte. Na medida em que a artista introduz em sua obra elementos excluídos ou oprimidos historicamente. Tal como o papel da representação feminina, do casamento, do negro e dos indivíduos marginalizados em nossa sociedade.

O professor de artes hoje, depara-se com realidades diferentes que, têm em comum o excesso de exposição às imagens midiáticas e, em contraposição, a carência de acesso às imagens produzidas no campo das artes plásticas bem como do acesso a análises críticas dessas mídias. O consumo de imagens em alta velocidade, como é o caso das mídias televisivas, cinematográficas ou na internet imprime no telespectador uma maneira pré-editada e programada de percepção[2] que, geralmente, propaga valores eurocêntricos[3] de caráter dominador, que levam a sociedade a um processo de alienação cultural e desconhecimento do potencial da imagem como veículo de informação. Tornando os indivíduos incapazes de se colocar de maneira investigativa e crítica diante de sua realidade e transformando-os em consumidores passivos.

Assim, propomos como ponto de partida, ao trabalhar fotografia com estudantes de nível médio, um debate sobre as imagens midiáticas, cinematográficas, fotojornalísticas e publicitárias. Tais imagens, por fazerem parte do cotidiano dos estudantes e por serem amplamente veiculadas pelos meios de comunicação de massa, podem servir como rico material de introdução ao tema de pesquisa para, posteriormente, abranger artistas que trazem uma crítica a esses meios, às imagens e à maneira como elas são veiculadas ou que utilizam a imagem fotográfica como forma de expressão. Aproveitando para avaliar as mídias em que são difundidas tais imagens e a maneira que essas mídias se utilizam para difundi-las. Tal avaliação comparativa ajudará o aluno a perceber a influência que os veículos transmissores de informação exercem em nossa maneira de perceber a imagem e como acaba por influir na nossa maneira de perceber e se relacionar com o mundo.

Uma metodologia viável pode partir da análise de imagens que se encontram no cotidiano do aluno para, estabelecer uma postura reflexiva com a imagem fotográfica. A fim de compreender e levantar questões acerca de seu alcance no imaginário coletivo (através da análise das reações e opiniões do público), suas influências na constituição da sociedade e sua funcionalidade. Pode-se, posteriormente, estabelecer um paralelo com as imagens no campo das artes plásticas, neste caso, com os trabalhos da artista Rosangela Rennó, que ressignificará o papel da mídia em sua trajetória artística, utilizando-a como matéria-prima para o desenvolvimento de sua linguagem.
Estabelecer essa relação trará à luz uma conexão entre arte, cotidiano e realidade do aluno que poderá, se desejar, incorporar idéias contidas nas obras da artista, por entender a sua crítica diante da sociedade ou numa outra abordagem, estabelecer relações entre o papel da arte em nossa sociedade, ou ainda, partir para um exercício de produção própria.

Como referência histórica no campo da leitura de imagem, recomendo o trabalho proposto por Ana Mae Barbosa[4]. Sua proposta visa desenvolver vivências que incluem a fruição ou observação das obras, uma interpretação e um fazer produtivo, estabelecendo relações com um desenvolvimento da capacidade de crítica da obra de arte, por parte do aluno. Propondo alguns procedimentos com base na descrição, produção e análise de imagens. De sua interpretação e julgamento, especulando seus significados com base em dados coletados anteriormente, discutindo questões estéticas que tratam diretamente de sua qualidade expressiva, sem emitir juízos de valor como conceitos de belo ou feio. Segundo Ana Mae: “Quando falo de conhecer arte falo de um conhecimento que nas artes visuais se organiza inter-relacionando fazer artístico, a apreciação da arte e a história da arte.”[5]

Estudamos ainda, a proposta metodológica com base em estudos semióticos realizados por Ana Amélia Bueno Buoro, em seu livro: Olhos que pintam[6] que, por sua vez faz referências a pesquisadores como Robert Ott, Edmund Feldman, Michael Parsons e A. J. Greimas dentre outros.

As propostas desses pensadores sobre o ensino de arte nas escolas convergem de certa maneira para pontos em comum, tal qual podemos verificar na proposta de Robert Ott que vem de encontro à proposta de BARBOSA e BUORO e a qual citaremos a seguir, a fim de complementar as sugestões postas anteriormente, de análise da imagem com fins didáticos.

Segundo Ott[7], tal análise pressupõe as seguintes ações: descrever, analisar, interpretar, fundamentar e revelar. Descrever implica em investigar tudo o que pode ser percebido sobre uma obra que se pretende estudar criticamente; Analisar é, segundo o autor, a investigação dos elementos da composição e formas da obra de arte; Interpretar se transforma no momento da expressão de reações, reflexões e emoções suscitadas pela obra; Fundamentar é a possibilidade de agregar conhecimento e informações à obra, que provenham da história da arte e do campo da crítica; Revelar consiste no desenvolvimento, pelo aluno, de uma produção artística inicial;
Com base em experiências práticas de oficinas realizadas com alunos do ensino fundamental e médio[8] e estudos de arte - educadores como Joly, Ana Mae e Buoro pensamos a análise de imagens a partir de alguns pressupostos, com ênfase nos exercícios de observação e problematização.

Para JOLY[9], a leitura de imagem sugere três questões e a definição dos objetivos de análise:
Um ponto fundamental para definir uma metodologia de análise está na definição dos objetivos que se deseja atingir ao analisar uma determinada imagem. A definição dos objetivos possibilitará planejar e encontrar os meios mais adequados para definir a pesquisa e investigar a temática escolhida.

A primeira refere-se à imagem como “linguagem universal” por se tratar, muitas vezes, de algo reconhecível, o que sugere uma leitura natural, não exigindo do leitor nenhum aprendizado. Segundo JOLY, esse pensamento pode contribuir tanto para a banalização do ato perceptivo como para a introdução de aspectos elementares na leitura de uma imagem, que não pode se reduzir a identificar objetos retratados.

Contudo, procuraremos refutar que, nenhuma leitura pode ser natural, uma vez que é efetuada de acordo com um repertório cognitivo adquirido a partir de experiências anteriores. Daí a banalização à qual Joly se refere. A nosso ver, ele coloca como leitura “natural” aquela que aprendemos intuitivamente mesmo antes do domínio do texto escrito, leitura essa realizada, na maior parte das vezes, sem um conteúdo crítico pormenorizado. Em suma o autor propõe um estranhamento ao comum, ou seja, uma desnaturalização e um enriquecimento perceptivo do ato de ver. Tal exercício nos permite rever uma imagem a partir de uma nova ótica e compreender que interpretar é ampliar a capacidade de compreensão de uma imagem ao infinito. Com um desejo de descobri-la para além da banalidade ou do comum a que pode ter sido legada. Propiciar ao espectador desta obra, uma nova elaboração de idéias na percepção de detalhes que antes não foram observados. Uma ressignificação de símbolos, mesmo que estes já tenham sido amplamente difundidos. Provando que é possível reverter esta percepção ao infinito, toda vez que o espectador relaciona-se com a obra de maneira criativa.

A segunda terá um caráter problematizante e perscrutador, relaciona-se ao que o autor atentou, como sendo uma leitura em busca da intencionalidade de seu produtor. Interpretar uma mensagem e analisá-la, não consiste apenas em tentar encontrar ao máximo uma mensagem pré-existente mas, compreender e questionar o que essa mensagem, nessas circunstâncias, provoca em termos de significação aqui e agora, enquanto se tenta separar o que é pessoal do que é coletivo e, neste ponto, vamos de encontro às considerações feitas por outros autores que citamos no segundo capítulo do presente trabalho.

A terceira questão vincula-se ao caráter artístico que uma imagem possa apresentar. Esse aspecto poderia ser um impeditivo da leitura, pois a arte não seria da ordem do intelecto apenas, segundo ele, mas do afetivo e do emotivo. Segundo Joly, temos o hábito de considerar o campo da arte oposto ao da ciência, de pensar que a experiência estética pertence a um pensamento particular, irredutível ao pensamento verbal. Com tais afirmativas, o autor supõe que as imagens no campo da arte podem e devem (se houver interesse ou necessidade) ser analisadas sistematicamente, inclusive, através de meios técnicos.

Já Ana Amélia Bueno Buoro[10], fala do reconhecimento de uma linguagem visual que, para ser lida, precisaria ser entendida em sua sintaxe, comparando a introdução à leitura de imagem, a uma espécie de “alfabetização” através dos elementos plásticos contidos na obra. Daí a necessidade do educador também se formar como um leitor de imagens visuais.

Neste ponto conviria dizer que, a abordagem semiótica feita por BUORO, vai de encontro ao que, para KOSSOY, implicaria numa análise iconográfica[11], detendo ambos, pontos em comum, apesar da utilização de metodologias diferenciadas, bem como conceituações referentes à sua área de pesquisa específica.

Contudo, ao pensar em “alfabetização”, nos sobrevém a idéia de uma metodologia de ensino-aprendizagem que leve a tal resultado e, sobre isto, cabe uma reflexão importante: Pensar a alfabetização de imagens, não é pensar de maneira restrita, onde a existência de uma determinada metodologia funcionaria tal qual um receituário pronto para ser aplicado em uma sala de aula. Este é um processo complexo do qual, tratam muitos outros arte-educadores e que cabe a cada educador-pesquisador, encontrar a partir de sua realidade, os fundamentos elaborados por diversos teóricos da educação, refletir sobre suas idéias e propostas e trocar experiências experiências a fim de pensar e refletir sobre a sua realidade.

Assim como KOSSOY, BUORO ressalta a importância do conhecimento historiográfico para o ensino da arte e aprofundamento na compreensão da imagem.

No caso da obra de Rennó, seria necessário, segundo Buoro, buscar referências históricas em textos escritos por historiadores, críticos de arte e inclusive pela própria artista (em forma de depoimentos, entrevistas ou textos), para entendermos melhor a sua obra, sua trajetória profissional, processos de criação, conflitos e a maneira como concebe seu trabalho em relação com o mundo. Tal processo metodológico, contextualizaria a obra e ampliaria nosso conhecimento acerca de sua linguagem, intencionalidade, produção e relevância histórica para a arte contemporânea.

A autora atenta, ainda, para o fato de que, a análise histórica se constitui também na linguagem do historiador, que por sua vez dispõe a sua leitura pessoal e discurso persuasivo.[12] Assim, tal fato, exigirá do pesquisador uma leitura crítica destas fontes.

Uma sugestão dada pela autora implica na leitura da própria imagem, ou seja, para melhor compreender uma obra, seria importante nos pautarmos na própria obra como elemento crucial de nossa análise. Pois, a obra em si, já abarca grande parte dos elementos necessários para estabelecer um diálogo introdutório a fim de a compreendermos melhor. Passando, posteriormente, ao texto ou conteúdo histórico e sociológico, não sendo estas, necessariamente uma ordem metódica.

Um ponto de partida para a leitura da obra, segundo Ana Claudia de Oliveira (também citada na tese de Buoro) propõe um itinerário de leitura perceptiva dos elementos constituintes da obra em relação uns com os outros.

Estabelecer relações entre os elementos da imagem, segundo Buoro, seria perceber em seu significado, na medida em que a leitura se aprofunda e se constrói com base na análise de dimensões visíveis ou invisíveis na obra, a maneira como os elementos se modificam e dialogam para compor o conjunto da mesma. Como aspectos visíveis, a autora cita alguns desses conteúdos imprescindíveis para a leitura, aos quais ela denomina em sua obra como dimensões eidéticas, cromáticas e topológicas[13]. Apesar de serem abordados para a análise de pinturas, procuramos ao ler sua tese, captar elementos que pudessem ser aplicados à leitura da imagem fotográfica o fizemos também, quando descrevemos as obras colocadas neste trabalho para análise[14].

As dimensões eidéticas (relativas à forma, às linhas, aos planos), as cromáticas (relativas às cores) e as topológicas (que relacionam e os elementos eidéticos e cromáticos no espaço da obra, trabalha composição como um todo, tratando não apenas das questões relativas a volumes[15] e espaços mas, também, todas as referências presentes nas outras dimensões[16]. Disposição da obra no espaço, iluminação, suportes, materialidade, dimensões.

Enfim, como dito anteriormente, o desenvolvimento de qualquer proposta em sala de aula, dependerá dos critérios adotados pelo professor e do planejamento traçado por ele junto à turma, de acordo com os objetivos que se deseja atingir. Para isso, acreditamos que o educador não precisa restringir-se a abordagens que dizem respeito apenas ao campo da arte, mas deve também, permear o campo da cultura midiática e analisar imagens fotográficas que compõem o universo publicitário, fotojornalístico e o ciberespaço ajudando os alunos a perceber a maneira como essas imagens estão atuando profundamente na formação de nossa sociedade.

Importante levar em conta que os jovens, hoje, são também produtores, consumidores e difusores de imagens fotográficas, sobretudo, pela internet ou pela televisão. Daí a relevância de pesquisar, de maneira crítica, essa vasta produção (amadora ou não) e refletir sobre seus aspectos junto à atualidade e de que maneira os conhecimentos do campo da arte podem ajudar no questionamento e transformação deste tipo de produção, cujas conseqüências, intimamente ligadas ao culto imagético, sobretudo da auto-promoção narcisística, do culto da imagem de caráter eurocêntrico e do consumo, ainda não terem sido amplamente delineadas por estudos sociológicos.

[1]KELLNER, Douglas. A cultura das mídias. Estudos culturais: identidadee política entre o moderno e o pós-moderno. Bauru: EDUSC, 2001, p. 132.

[2] Cf. CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Midias. São Paulo: Contexto, 2006, p. 18.
[3] Entende-se por abordagem eurocêntrica, não apenas as manifestações culturais e visões de mundo provenientes do continente europeu mas, também, aquelas de países como os Estados Unidos que mantêm e exercem um domínio sobre os demais países. Ver: SHOHAT, Ella e STAM, Robert _ Crítica da imagemeurocêntrica._ Multiculturalismo e representação. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

[4] Cf. BARBOSA, Ana Mae. A importância da imagem no ensino da arte: Diferentes metodologias. (Apud. A imagem no ensino da arte: Anos 80 e novos tempos. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 36-37.
[5] BARBOSA, 1991, apud FOERST, Gerda M. S. Leitura de imagens: Um desafio à educação contemporânea. Vitória: EDUFES, 2004, p. 99
[6] Cf. BUORO, Ana Amélia Bueno. Olhos que pintam: A leitura da imagem no ensino da arte. 2ª ed. São Paulo: Educ/Cortez, 2003, p. 31.
[7] Robert Ott, p.128; Apud. FOERST, Gerda M. S. Leitura de imagens: Um desafio à educação contemporânea. Vitória: EDUFES, 2004.
[8] Foram realizados estágios com estudantes de escolas públicas e particulares nos anos letivos de 2006 e 2007, na cidade de Vitória.
[9] Apud. FOERST, Gerda M. S. Leitura de imagens: Um desafio à educação contemporânea. Vitória: EDUFES, 2004, p. 41-46.

[10] Cf. BUORO, Ana Amélia Bueno. Olhos que pintam: A leitura da imagem no ensino da arte. 2ª ed. São Paulo: Educ/Cortez, 2003, p. 31.
[11] A análise Iconográfica tem o intuito de detalhar sistematicamente e inventariar o conteúdo da imagem em seus elementos icônicos formativos; o aspecto literal e formativo prevalece, o assunto registrado é perfeitamente situado no espaço e no tempo, além de corretamente identificado. KOSSOY, Op. Cit. p. 95.
[12] Cf. BUORO, 2003,p. 78 e 66
[13] Cf. BUORO, 2003,p. 134.
[14] Ver p. 14 a 17 desta monografia.
[15] Quando aqui falo de volume, refiro-me à ilusão de volume causada entre as relações de luz e sombra encontradas na fotografia.
[16] Ibid., p. 135

O Grande Jogo da Memória



O Grande Jogo da memória (1991)
Fotografia, plástico polivinílico (detalhe com 156 peças)
Dimensões 6,5 X 9,5 cm (cada)
HERKENHOFF, Paulo. Rosângela Rennó. São Paulo: EDUSP, 1998.

Também esta obra sofrerá limitações de análise, por se tratar de uma investigação feita a partir de impressões de imagens fotográficas difundidas sob o mesmo registro em outros livros e sites. Como pudemos verificar nessas fontes, em momento algum, encontra-se um registro que leve em conta a recepção da obra pelo público ou maneiras de interagir que aprofundem sua compreensão. Permanecendo a impressão sugerida pelo registro do fotógrafo e pelo caráter da obra representada. Ainda que, em síntese, tenhamos conseguido captar sua essência interpretativa, nada substitui a vivência in loco e a confrontação com a mesma em tempo real. A relação estabelecida com a obra bem como o local que ela ocupa no espaço expositivo, a ressignifica e lhe agrega valores, que só a vivência pode fomentar.

Tal fato, contudo, longe de impossibilitar minha análise, coloca em prática e explicita questões abordadas nesta pesquisa sobre a fotografia e a realidade. No caso desta obra, em especial, a fotografia revela-nos o mistério e mantém-no velado. Na medida em que nossa curiosidade encontra-se impossibilitada de explorar e desvelar a obra, em tempo real, mesmo que (e isto é importante relembrar), saibamos que todas as fotografias desse jogo da memória sejam de pessoas anônimas, não nos contentamos com imagens imaginárias e desejamos visualizar a obra como um todo, tal como foi concebida pela artista. Analisando uma a uma as fotografias escolhidas e as pessoas selecionadas para compor este “jogo”. Não nos contentamos com o fato de criar outras possibilidades fisionômicas para as “cartas” que estão ocultas pois, este tipo de imaginação, apesar de criativa produz “novos” anônimos e a obra acaba por adquirir um novo significado.

Tal curiosidade transita entre o desejo de revelação das imagens representativas desses indivíduos e o desejo de revelação da própria obra, o que nos põe em contato com a expressão da artista, que revela: “As veladuras e apagamentos intencionais que proponho, tem como objetivo gerar uma espécie de dificuldade, para forçar o espectador a buscar a imagem no limite da visibilidade.”[1] O que nos faz imaginar ainda, as possíveis maneiras que ela estrutura a obra a fim de provocar reações diversas tendo, como referencial particular o espectador diante da obra.
Contudo, outras coisas nos instigam, tanto na imagem desta obra quanto na obra em si, conhecer a origem de cada imagem que a compõe e colocar esse “jogo” em prática, jogando-o. Desejamos descobrir como se deu o processo criativo de produção desde sua concepção até a sua instalação em diferentes espaços expositivos, sua repercussão nas diversas localidades e com públicos distintos.

No livro da EDUSP à cerca de Rosângela Rennó[2], consta sobre os trabalhos realizados pela artista no decorrer de sua carreira, descrevendo alguns pontos significativos nesta construção da dualidade Identidade/Não Identidade, em sua trajetória e afirma: “Rennó opera a crítica, através da articulação das imagens, da própria função simbólica da fotografia como processo de retenção do tempo.”[3]

[1] Rosângela Rennó: Depoimento [Coordenação Fernando Pedro da Silva, Marília Andrés Ribeiro, Edição do texto e organização do livro: Janaína Melo] Belo Horizonte: C/Arte, Coleção Circuito Atelier, 2003.
[2] Idem, p.139.
[3] Op. Cit. p. 152

Puzzle


Puzzles (1991)
Fotografia, acrílico, parafusos, eucatex e madeira
Dimensões 57 x 68 X 2,5 cm
Coleção de Isabella Prata (São Paulo).
Foto: César Duarte.
SILVA, Fernando Pedro da & RIBEIRO, Marília Andrés. Rosângela Rennó: Depoimento [Edição do texto e organização do livro: Janaína Melo] Belo Horizonte: C/Arte, Coleção Circuito Atelier, 2003.

Rosângela Rennó, na série de jogos que remetem a brinquedos infantis, volta-se para uma construção mais pedagógica[1] de construção do olhar social através da fotografia, como nas obras Puzzle (Mulher e Homem) (1991) que se compõe de dois tabuleiros sobre dois pedestais de madeira, individuais e separados, dispostos lado-a-lado, contendo imagens móveis de um quebra-cabeça. Cada pedestal expõe uma imagem fragmentada de uma fotografia de identidade, ampliada para as dimensões: 54x68 cm.

Tal foto, de autoria de César Duarte, registra a maneira como essas obras foram expostas. Esta imagem aparece em outros meios de reprodução, sendo eles bibliográficos e digitais, o que a transformou no registro documental de maior acesso para análise. No entanto, mesmo mediante diversas buscas não pudemos encontrar outras imagens referentes ao registro da mesma obra.

Ao mesmo tempo, a artista parece criar um paradoxo entre as idéias de FLUSSER, quando enfatiza, literalmente, a condição de “peças de um jogo”[2] ao colocar as fotografias 3x4, em forma de um jogo da memória, pois, na medida em que deixa clara a idéia de que nos tornamos peças de um jogo, também nos estimula a jogá-lo. O fragmento do texto parece atestar tal idéia do autor: “O universo fotográfico é um dos meios do aparelho para transformar homens em funcionários, em pedras de seu jogo absurdo.”[3]

A utilização de fotografias 3x4 nesses trabalhos provém da intencionalidade, de Rennó, de trabalhar com a identidade das pessoas representadas nessas imagens. Ao longo de seu trabalho, a artista modifica a aplicação dessas fotografias em moldes variados, ressignificando-os. Sendo ora ampliadas e expostas em seqüência sem identificação das pessoas, ora compondo objetos ou jogos, como podemos ver nas imagens a seguir. Como se tudo isso se constituísse num universo de jogos de reconstrução da memória, da identidade que o próprio objeto fotográfico propõe.

A fragmentação dessas imagens gera um dinamismo do olhar, na busca por uma recomposição e ordenação das partes num esforço, também simbólico, de reconstituição da identidade perdida, do indivíduo anônimo. Tal fato desencadeia um processo mental que tende a reconstituir as imagens em nossa memória, numa tentativa de ”estabilizar” a imagem.

Segundo Herckenhoff na obra puzzle: “faz-se uma alusão aos cortes na composição fotográfica, agora segundo um outro sentido, não para a imagem, mas para o próprio ato do corte. A obra é propiciatória da experiência simbólica de reconstituição do sujeito.”[4]

Ao analisarmos as imagens identificamos pistas que nos remete à um outro tempo. A ausência de cores, as vestimentas formais e características fisionômicas (corte de cabelo e bigode) dos indivíduos, revelam um tempo passado e nos remetem, em alguns casos, às fotografias de documentos de parentes distantes em um tempo ou espaço longínquo, de pessoas que nem chegamos a conhecer. Esta sensação de identificação com um familiar remoto, estabelece um laço afetivo de ancestralidade. A partir de obras como essas podemos encontrar uma relação com o passado, com entes que viveram antes de nós e daí agregamos um fator que é a curiosidade. Poder-se-ia imaginar que tais indivíduos anônimos pudessem ter vivido no tempo de nossos avós ou bisavós e nos tornamos, de certa maneira, “solidários” a essas “pessoas”, lançando sobre essas imagens um olhar afetivo, como o olhar que lançamos a uma pessoa órfã ou perdida.

Barthes atribui essa sensação ao caráter subjetivo que uma fotografia pode apresentar diante de cada espectador (Spectator), mediante a relação que este estabelecerá com ela e afirma: “Eis-me assim, eu próprio, como medida do “saber” fotográfico. O que meu corpo sabe da fotografia?” [5]
Tal sensação, ele também relaciona com um sentimento de morte que, de certa forma os fotógrafos contribuem para difundir na medida em que reduzem um momento vivo em uma cena congelada em um papel fotográfico e compara o horror da morte à sua plenitude. Talvez a melancolia que nos assola quando vemos uma fotografia, como quando nos deparamos com os trabalhos de RENNÓ, possa ser relacionada com um sentimento de dor vivenciado pela certeza de nossa própria morte e sobre a qual BARTHES, expõe na seguinte passagem: “O único “pensamento” que posso ter é o de que no extremo dessa primeira morte está inscrita minha própria morte; entre as duas mais nada, a não ser esperar.”[6]

Cabe relembrar que tais fotos trazem em si conteúdos objetivos e técnicos próprios de uma fotografia para documentos de identidade. E aqui, valho-me das observações metodológicas de KOSSOY,[7] ao inferir sobre dada imagem, questionando seu uso e procedência original a fim de compreender sua função em um dado momento histórico, além de sua importância e configuração no momento presente. Neste caso, a importância dessas imagens fotográficas, que passam a fazer parte de uma obra de arte e ganham um novo contexto histórico de valor, para o campo das artes plásticas é que elas ressignificam a configuração inicial para a qual teriam sido “programadas”. Como, por exemplo, a utilização de fotografias em preto e branco que tende a parecerem mais antigas do que realmente são.

Na obra, visualizamos tais imagens e sabemos que foram produzidas num espaço de tempo delimitado pelas implementações tecnológicas de sua época. Pois, com a difusão da fotografia colorida, até mesmo as fotos para documentos, amplamente produzidas em preto e branco até a década de 1980, passaram a ser produzidas a cores a partir de 1990, até chegar aos nossos dias quando não encontramos mais fotografias 3x4 em preto e branco.

Contudo, ainda hoje, são produzidas fotos em preto e branco através da fotografia digital, que continuam insinuando um tempo de um passado remoto, somente contradito pelos elementos iconográficos da foto, as vestimentas, as posturas das pessoas representadas e pelo resultado estético característico do papel de impressão digital cuja materialidade difere daquele tradicional, utilizado para negativos.

As fotografias para documentos, agregam um valor específico para a obra, uma vez que de maneira geral, e até hoje, são produzidas de forma mecânica e objetiva, em estúdios fotográficos e com cânones pré-estabelecidos, para cumprir um papel de identificação do sujeito. São estas características que se relacionam com a obra e a configuram com o intuito de trazer à tona um retrato, cuja objetividade de cada indivíduo estaria supostamente à mostra, revelando-se inclusive, em sua forma aparente de apresentação.

A própria maneira como a artista instala ambas as obras as insere em espaços geométricos retangulares que, enquadram as imagens numa mesma estrutura matemática, proporcional e pré-formatada, aspectos estes que, contribuem para afirmar a posição rígida em que estão dispostas. Lado-a-lado homem e mulher como em um altar, prostrados diante do tempo, com fisionomias sérias e resolutas, parecem nada dizer à cerca do tempo em que se inserem e se evidenciam pelas vestes e penteados, além de uma datação na direita inferior da foto do homem que denuncia um tempo em que a datação da fotografia tal como se apresenta nesta imagem, tende a delimitar o sujeito num espaço-tempo objetivo, que parece rotulá-lo com os seguintes dizeres: “Data de validade específica e delimitada”, uma espécie de “coisificação” do indivíduo, como se faz com as fotos de passaportes produzidas até hoje, com fotos de presidiários e com mercadorias industrializadas, amplamente registradas, datadas e controladas.

Como o contato que estabelecemos com essa obra, “puzzle”, está sendo realizado através de imagem impressa e não pessoalmente, colocamos aqui umas questões: São os fragmentos desta obra, dotados de mobilidade? Poderíamos através da interação com a obra, remontarmos estes quebra-cabeças, essas imagens fragmentadas? Provavelmente sim e esta postura de interação com a obra, também está sendo determinada pela artista, que mantém o espectador em pé, diante das imagens, contrariando a posição à priori relaxada, na qual comumente nos dispomos diante de jogos desta categoria. Como se quisesse ressaltar que, apesar de ser um jogo, ele não possui o caráter de entretenimento lúdico ou escapista. Fato que se reforça com as fisionomias austeras dos retratos que aparecem com esfinges, a indagar o espectador.

[1] Idem, p. 137.
[2] Ver imagem p. 33 do presente trabalho
[3] Op. Cit. p. 65
[4] Op. Cit. p. 138

[5] Cf. BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Trad. Julio Castañol Guimarães, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 20.
[6] Idem. p. 138.
[7] KOSSOY, Boris. Fotografia & História. 2ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

A fotografia na obra de Rosângela Rennó

Mulheres Iluminadas
Série “Pequena ecologia da imagem”
1988 Fotografia em papel de brometo de prata
Dimensões 35 x 27 cm ou 120 x 80 cm

A escolha de Rosângela Rennó[1] como ponto de partida para análise da fotografia contemporânea nas artes plásticas, adequou-se a essa pesquisa por diversas questões: A importância que a artista representa para o cenário da arte contemporânea internacional, pelo trabalho de fusão entre fotografias jornalísticas e refugos fotográficos resgatados de diferentes épocas e fontes, que a mesma explora através da apropriação e manipulação para realizar suas obras. Pelo poder que essas obras têm de recodificar imagens fotográficas e inseri-las num outro contexto perceptivo e simbólico que trazem à tona questões de ordem sociológica, política e ideológica além de trabalhar com a memória coletiva e individual, com idéias de construção/desconstrução de uma identidade nacional multicultural, associando esses conceitos ao fazer artístico, até a elaboração do projeto final de uma obra de arte, que ocupa um espaço tridimensional. “A poética de Rosângela Rennó rompeu de vez com as fronteiras entre a fotografia, as artes visuais e a literatura, adentrando um terreno anterior a qualquer modalidade estética instituída: o território próprio da arte.”[2]

Com base nas reflexões desenvolvidas no capítulo anterior, analisaremos algumas obras da artista, iniciando com uma breve contextualização histórica de seu trabalho e formação.
Rennó graduou-se em arquitetura pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, em 1986 e em artes plásticas pela Escola Guignard, em 1987, também em Belo Horizonte.

Doutourou-se em Artes pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade da São Paulo, mudando-se posteriormente para o Rio de Janeiro. Iniciou sua trajetória artística na década de oitenta, tendo realizado sua primeira exposição coletiva, na Galeria IAB, em 1985 e primeira exposição individual quatro anos depois, na Sala Corpo de Exposições, ainda em Belo Horizonte.
Nesta mesma década ganhou prêmio em salões e galerias de arte no Rio, em Belo Horizonte e São Paulo. Tais prêmios introduziram-na numa trajetória de exibição em muitos outros lugares do país e no exterior, nos quais a artista pode participar e garantir uma representatividade da arte contemporânea brasileira em vários países europeus e americanos. Hoje, seu acervo pode ser encontrado em inúmeras coleções de arte no país e no exterior.

Em 1997 é publicado o livro Rosângela Rennó, dentro da série artistas da USP, que apresenta a obra da artista por meio do ensaio “Rennó e a beleza e o dulçor do presente”, escrito pelo crítico Paulo Herkenhoff, que utilizo como referência nesta pesquisa.

Rennó faz parte de um período da produção artística contemporânea que consolida o rompimento com inúmeros cânones da arte moderna, fundindo as barreiras entre as linguagens artísticas e preconizando o que FLUSSER[3] escreveu sobre a questão da superação do aparelho na fusão entre a arte e fotografia.

Conseguindo transcender a máquina desviando a ênfase no “aparelho” para a ênfase no desenvolvimento de estéticas relevantes para o campo da arte o que, consequentemente, modifica o modo de fruição do espectador com a obra, ou seja, consegue modificar de certa maneira, a forma como o espectador se relaciona com a obra. Ampliando as formas tradicionais de apresentação da imagem fotográfica (papel fotográfico, bidimensionalidade, formato retangular) a artista amplia também as possibilidades de reflexão e percepção de uma mesma imagem através da expansão dos pontos de vista, não somente pelo ângulo de composição da fotografia, mas também pelas diversas formas que esta pode tomar quando adentra o espaço das galerias de arte. Essa modificação permite ao espectador refletir sobre coisas outras, que vão além da própria imagem e que, possibilitam muitas vezes estabelecer conexões com um tempo histórico específico, com condições sociológicas evidenciadas, com possibilidades filosóficas suscitadas e com o próprio papel da fotografia e da arte em nossa sociedade.

Na década de 1980, RENNÓ passa a colecionar fotografias antigas, adquirindo-as de álbuns de família descartados, em estúdios populares ou em feiras. Quando em 1989 muda-se para o Rio de Janeiro define seu trabalho como mais realista e agressivo, dizendo-se influenciada pelas características da metrópole e pelos trabalhos de Hélio Oiticica e seus Bólides[4]. Trabalha com sobras da cultura e fotogramas descartados, arquivos penitenciários, notícias da crônica social ou policial, recompõe as imagens e as reorganiza em sua trajetória como artista para elaborar suas obras. Com este material inicia um trabalho que denominou “Arquivo universal”.[5]

Apropria-se de tais imagens e atribui sua própria leitura na construção de uma linguagem para as artes plásticas. Deixa de produzir imagens, priorizando o resgate do que ficara esquecido pela produção massificada da pós-modernidade.

Segundo a artista, toda fotografia seria mentirosa e constituída por uma névoa simbólica, um espaço inatingível, que seria o próprio acesso ao momento em que a foto foi produzida e a percepção de toda a complexidade inerente a um determinado instante.[6]sociolquest atualidade, trazendo as,stfotografia contempor

Tadeu Chiarelli, ao referir-se ao trabalho da mesma artista identifica nele questões peculiares à produção fotográfica das décadas de 1980 e 1990, o que denota a importância da obra de RENNÓ para o contexto da arte contemporânea brasileira, enfatizando, ainda:[7]

Se no princípio, sua produção possuía uma dimensão lírica, comentando as distorções do cotidiano, (através da apropriação de fotos descartadas dos álbuns de família, por não se adaptarem às normas de perfeição técnica), com o passar do tempo passa a ganhar uma potência épica, na medida em que a artista repropõe ao circuito da arte a imagem de brasileiros destituídos de qualquer vitalidade - imagens fantasmagóricas de seres anônimos.

Traçar o panorama composto por artistas contemporâneos que compartilham uma mesma tendência, como o fez CHIARELLI, está de acordo com a proposta de análise iconológica, defendida também por KOSSOY[8] quando este denota a importância de pesquisar outros autores contemporâneos, para se entender a intencionalidade de determinada obra.

Ao estabelecer uma leitura da obra de Rosângela Rennó, nos sobrevêm inúmeras questões. Uma questão marcante é a dualidade com a gênese das identidades fotografadas. Tal questão, também recorrente nos meios de comunicação de massa onde, muitas vezes, as identidades se perdem em meio a um excesso de ícones visuais, parecem apelar para um lugar de sentido no mundo pós-moderno, ou para uma ressignificação. A artista, atentando para isso, constrói sua trajetória artística na busca de saídas e questionamentos em torno deste eixo de indagação social, de um resgate da memória coletiva através do processo artístico.

O crítico de arte, Tadeu Chiarelli, no mesmo texto escrito para a exposição Identidade/ Não identidade: Fotografia Contemporânea Brasileira, escreve sobre a produção de artistas plásticos brasileiros que revelam este mesmo conflito, como cerne de seus trabalhos fotográficos. O autor cita as décadas de 1970 e 1980, como fundamentais para uma mudança, sobretudo no campo da arte, e complementa:

Se a fotografia brasileira até os anos 80 se caracterizou, portanto, e em grande parte, pelo desejo - ou obrigação - de buscar a identidade do "brasileiro", ou dos diversos brasileiros espalhados pelas mais variadas regiões do país, uma nova geração de artistas, surgida no final da década passada, tentou demonstrar através desse mesmo meio (sempre tão preso à captação do "real") a própria negação da possibilidade de caracterizar o brasileiro como ser social ou individual.[9]

Tal exposição reuniu importantes nomes da fotografia contemporânea brasileira, no âmbito das artes plásticas e esteve representada também por Rosângela Rennó.

O autor descreve as linhas de pesquisa dos artistas expositores e identifica duas vertentes de pensamento em torno da questão da identidade: uma que diz respeito a uma valorização dessas “identidades perdidas” e outra que enfatiza essa perda, apagando de vez os traços de individuação. Contudo, algumas dessas vertentes permeiam-se em suas propostas e convergem de uma maneira ou de outra para uma mesma questão, como se pode constatar neste trecho do autor:

Tais artistas, através da exploração da perda da própria identidade ou da identidade do outro, discutem o aniquilamento do indivíduo numa sociedade de massas, com as características avassaladoras que tal tipo de sociedade assume num país como o Brasil.[10]

Outro ponto em comum, segundo o mesmo autor, é a recusa de produzir obras fotográficas onde a objetividade da imagem seja o caráter principal. E aqui cabe relembrar determinadas obras de RENNÓ, cujas características nos provocam reflexões acerca da impossibilidade de identificação do indivíduo fotografado ou da afirmação de seu lugar dentro do contexto de nossa sociedade. O que explica a apropriação de imagens, a utilização de desfoques, cortes, sobreposições de camadas e distorções produzidas a partir de operações técnicas na hora da produção e/ou edição/revelação da imagem ou até mesmo quando da sua exposição. Em contraposição à nitidez da fotografia buscada por fotógrafos de gerações anteriores.

[1] Rosângela Rennó nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 1962.
[2] MELO (apud CHIARELLI, 2003, p. 92).
[3] Op. Cit. 1983, cap.2.
[4] Cf. HERKENHOFF, Paulo. Rosângela Rennó. São Paulo: EDUSP, 1998, p. 134 e 136
[5] RENNÓ, Rosângela. O Arquivo Universal e Outros Arquivos. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
[6] Cf. Rosângela Rennó: Depoimento [Coordenação Fernando Pedro da Silva, Marília Andrés Ribeiro, Edição do texto e organização do livro: Janaína Melo] Belo Horizonte: C/Arte, Coleção Circuito Atelier, 2003, p. 4.
[7] Fragmento de texto escrito por Chiarelli, para a exposição: “Identidade Não Identidade: Fotografia Contemporânea Brasileira”, no MAM de São Paulo, em 1997, assunto que desenvolverei com maiores detalhes no próximo tópico.
[8] Op. Cit. 2001, p. 104.
[9] Op. Cit. referência 42.
[10] Idem.

A mulher que perdeu a memória
Série “Pequena ecologia da imagem”
1988 fotografia em papel de brometo de prata
Dimensões 35 x 27 cm ou 120 x 80 cm




Alice não mora mais aqui (1987/88)
Série “Alice”
Fotografia em papel de brometo de prata
Dimensões 35 x 27 cm ou 120 x 80 cm
HERKENHOFF, Paulo. Rosângela Rennó. São Paulo: EDUSP, 1998.


Outro marco da produção fotográfica que surge no Brasil, entre os anos 1980 e 1990, é a tendência a extrapolar o espaço bidimensional, plano e objetivo, expandindo a fotografia para o campo da tridimensionalidade, para as salas expositivas e produção de objetos.

Chiarelli, sobre a questão da identidade na obra de Rennó, conclui:
Ao enfatizar a perda da identidade do "homem brasileiro" ou mesmo do sujeito individual, esfacelado na sociedade contemporânea, a fotografia explicita a sua própria perda de identidade nessa mesma sociedade repleta de novos meios para a "duplicação" da realidade, meios esses que aceleram a percepção tornando, para muitos, obsoleta a própria produção fotográfica.[1]
[1] Idem.




Afinidades eletivas
1988 2 fotografias película ortocromática, óleo mineral, mármore, alumínio e vidro
Dimensões 19 x 09cm



Neste objeto Rennó trabalha com fotografias de casamento descartadas e faz a fusão entre fotografias de casais diferentes, de modo a confundir as duas imagens. Fato interessante que nos leva a refletir sobre o papel do casamento na atualidade, onde homem e mulher repensam seus papéis diante da família e sociedade. Onde os relacionamentos conjugais manifestam-se de maneiras diversas e a possibilidade de recorrer ao divórcio marca uma nova etapa da emancipação, sobretudo, feminina.
Posteriormente, a artista efetuou inúmeros trabalhos em diferentes formatos com esse mesmo gênero fotográfico. Trabalha com o resgate do papel da mulher na sociedade em diversas séries dentre elas, “Alice” e “Conto de bruxas”, onde revê o papel feminino diante de um imaginário construído a partir de imagens ilustrativas de contos de fadas que são veiculadas em livros de histórias infantis.


Encarnação do verbo (1988)
Série “Conto de bruxas”
Fotografia em papel de brometo de prata
Dimensões 160 x 100 cm
HERKENHOFF, Paulo. Rosângela Rennó. São Paulo: EDUSP, 1998.

Algumas considerações sobre a percepção da fotografia

A imagem fotográfica pode ser compreendida em sua profundidade, na medida em que reconhecemos os fins para os quais esta foi produzida, segundo KOSSOY:

A representação fotográfica reflete e documenta em seu conteúdo não apenas uma estética inerente a sua expressão mas também uma estética de vida ideologicamente preponderante num particular contexto social e geográfico num momento preciso da história.[1]

KOSSOY afirma que a fotografia, compõe junto ao texto a retórica da mensagem publicitária, que tem como principal objetivo levar o homem ao consumo e completa:

A indústria da imagem se viu completamente desenvolvida em função da sociedade de consumo; e a publicidade estabelecendo padrões de gosto e comportamento, tem papel preponderante na criação de todo um ideário estético.[2]

Tal retórica associada a linguagem textual nos remete ao texto de BARTHES, quando este ressalta a importância da correlação entre estes elementos persuasivos numa sociedade em que a escrita ainda é predominante e, constitui junto à imagem, a estrutura da informação.[3]


Cabe ainda ressaltar que nem mesmo as imagens fotojornalísticas cujo caráter informativo é o que se evidencia, fogem à regra do consumo e muitas vezes confundem-se com fins publicitários ou ilustrações dos textos.


Quando lemos um texto, inferimos sobre ele de diversas maneiras, criamos relações perceptivas que muitas vezes vão de encontro aos princípios da produção imagética. Relacionamos constantemente, as palavras e as coisas, para construirmos “paisagens” ou idéias.


Para FLUSSER existe uma importante relação entre texto e imagem para a qual devemos atentar a fim de, compreendermos um pouco mais a respeito da história do ocidente. Ele denomina de textolatria, uma espécie de fidelidade estéril[4] ao texto, tanto científico como ideológico, que levaria a uma crise do pensamento imaginativo. Uma vez que, dotados de uma espécie de hermetismo, tais textos se tornam “inimagináveis”, termo utilizado pelo autor. Assim, os conceitos, destituídos de imagens acabam por esvaziar-se. Tal esvaziamento por sua vez, implicaria numa crise do processo histórico que, perderia a função de recodificar imagens em conceitos e de desmistificá-las, comprometendo a compreensão dos textos.


Na medida em que textos não dão mais lugar à imaginação e sim a conceituações esvaziadas, estas lacunas começam a serem ocupadas pelas imagens técnicas, em especial, segundo o autor, pelas imagens fotográficas. Constituindo uma sociedade idólatra, que nas palavras do autor seria: “Incapacidade de decifrar os significados da idéia não obstante a capacidade de lê-la, portanto, adoração da imagem.”[5]


Tais considerações escritas, ainda na década de 1980, parecem preconizar o mundo contemporâneo em que vivemos, com a revolução da internet e das imagens em movimento, do simulacro da realidade pós-moderna através dos veículos de comunicação da “cultura de mídia”[6] e das imagens midiáticas, também em muitos casos, esvaziada de conteúdo imaginativo.


Tais fatores convergem também para uma massificação das relações sociais e dos indivíduos. Relações perigosas que põem em risco manifestações culturais e diversidades expressas pela identidade cultural e individual. Mediante este risco, misturam-se e contrapõem-se duas correntes, uma que diz respeito a estes movimentos ditos globalizantes, que tendem a homogeneizar um conjunto de relações sociais e um outro que defende a diversidade cultural e a individualidade.


Ressaltamos a importância de selecionar e perceber uma imagem como um todo e em suas partes, atendo-nos a ela por um determinado espaço de tempo refletindo, questionando e ressignificando-a. “Ler” o mundo e “ler” a si mesmo a partir de imagens não é o mesmo que ler o mundo a partir de uma vivência concreta dos fatos, ou seja, in loco, pois, imagens fotográficas são representações intencionais de uma realidade. FLUSSER[7] despertar-nos para a necessidade de estudo e produção de uma filosofia da imagem afirmando que: “As imagens técnicas atualmente onipresentes, ilustram a inversão da função imagética e remagicizam a vida.” E ainda: “Trata-se da alienação do homem em relação a seus próprios instrumentos.”


Em seguida, FLUSSER conceitua a idéia de aparelho, dentro do contexto industrial-tecnológico em que se situa a sociedade pós-moderna. Para ele, a máquina fotográfica como um aparelho, é dotada de possibilidades produtivas pré-estabelecidas: “As superfícies simbólicas que produz estão de alguma forma inscritas, previamente por aqueles que as produziram. As fotografias são realizações de algumas das potencialidades inscritas no aparelho.”[8]


Apesar disso, o autor não exclui a individualidade do fotógrafo, definido por ele como aquele que busca extrair o máximo das potencialidades do aparelho muitas vezes permanecendo preso às suas possibilidades técnicas pré-programadas.


Tais colocações fazem-nos pensar na relação da fotografia enquanto arte e como o artista consegue subverter esta ordem na medida em que supera as potencialidades do aparelho para além dele. Supõe-se que, quanto maior a capacidade do artista de problematizar estas questões relacionando a fotografia com o campo da arte, maiores serão as possibilidades de subverter a ordem para a qual os aparelhos foram programados.


Neste campo, por sua vez, nos permitimos admitir que, alguns artistas, superaram esta “submissão” tecnológica e desenvolveram linguagens próprias. Para lembrar apenas dois nomes, ressaltamos os trabalhos de Eustáquio Neves e Rosângela Rennó, na medida em que manipulam o material fotográfico apropriado, descobrem e inventam diversas possibilidades técnicas e conceituais de materialização de suas idéias traduzindo-as em objetos de conteúdos estéticos e conceituais de extrema complexidade. Extravasando o suporte, que tinha como fim a apresentação em papel fotográfico e reafirmando o papel do artista que torna-se coadjuvante na construção criativa da linguagem, não mais se confundindo com o objeto, como afirma o autor na seguinte passagem: “Em toda função dos aparelhos, funcionário e aparelho se confundem.”[9]
KOSSOY acredita num fazer descompromissado com a funcionalidade[10], quando, a seu ver, a fotografia sendo expressa por uma intenção artística não teria, segundo ele, uma funcionalidade além do compromisso estético para a produção da obra. A afirmativa nos parece ingênua e deixa evidente o olhar de um especialista em análise iconográfica, voltada para a ciência histórica. Tal fato não se processaria caso a análise tivesse sido efetuada por um crítico voltado para o campo da arte que poderia levar em conta em seu processo metodológico, conhecimentos não somente históricos ou semióticos mas, também, filosóficos, sociológicos, políticos, ideológicos e psicológicos que, porventura interferissem na maneira como a obra foi produzida e na forma como é apresentada e recebida pelo público.


Observamos que, na medida em que o artista encontra-se em uma realidade de mercado, que está pautada pela lógica capitalista na qual estamos inseridos e pelo competitivo circuito de exposições; o mesmo pode colocar-se em constante busca por um espaço de visibilidade no circuito da arte, se deixando permear por este processo e suas características que, de uma maneira ou de outra, estará implícito em seu fazer artístico e conjunto de obras, podendo modificá-las com o passar do tempo, ainda que não o afirme. Assim, este fazer, será dotado de intencionalidades que irão além do desenvolvimento de uma linguagem supostamente descompromissada e da preocupação de se produzir uma contribuição inovadora para o campo da arte, mas também, estará intimamente ligado ao seu reconhecimento neste meio e sua conseqüente consagração como artista. Neste caso, cabe ao crítico de arte inferir sobre a trajetória do artista para aprofundar a análise de sua obra, identificando em que medida esta modificou-se segundo o contexto em que se insere.


Alcançar o mercado é sobreviver a ele, transforma-se em uma maneira de continuar produzindo sem sair do circuito de arte. No que se refere à obra de Rosângela Rennó, não creio que poderíamos concebê-la, tal qual ela se nos apresenta em seu percurso artístico, se não tivesse conquistado um espaço de visibilidade com sua expressão e a partir dos espaços que conquistou em sua trajetória. A funcionalidade aí, estaria intimamente ligada ao alcance do público através da linguagem artística, a intencionalidade da artista na construção desta trajetória e à conquista do território no circuito, por meios diversos, que não nos cabe aqui citar.


Proveniente de uma realidade pós-industrial, a lógica pós-moderna, agrega ao consumo das imagens o apelo pelo consumo de tecnologias mais complexas, produtoras dessas imagens. Cria a ilusão de que a qualidade produtiva está intimamente ligada à capacidade e velocidade do aparelho, de processar tais imagens. Assim como, o circuito da arte[11] nos pode impelir a um consumo de imagens supostamente elevadas intelectualmente, por fazerem parte de um campo dominado pela cultura erudita que, determinaria a ascensão a um status quo relacionado com esta elite e por ela determinado. Tais fatos fazem parte de um conjunto de idéias que não representam uma verdade absoluta, mas que, ainda assim, contribuem para determinar a maneira como os indivíduos se relacionam, em nossa sociedade, com os aparelhos e com a própria arte. Cria relações ideológicas e ilusórias de poder somente transponíveis através da ascensão econômica e ou através do consumo e apropriação de materiais que assegurariam este status mesmo que aparente e dissimulado.


As seguintes afirmações de SONTAG contribuem para explicitar este tipo de consumo e apropriação:

O conhecimento adquirido por conhecimentos de fotos será sempre um tipo de sentimentalismo, seja ele cínico ou humanista. Há de ser um conhecimento barateado uma aparência de conhecimento, uma aparência de sabedoria; assim como o ato de tirar fotos é uma aparência de apropriação...[12]

Sobre o ato de fotografar, FLUSSER afirma ser uma maneira do fotógrafo transcodificar suas intenções sejam elas estéticas , políticas ou de qualquer outra ordem em conceitos: “Fotografias são imagens de conceitos, que por sua vez são transcodificados em cenas.”[13]


O mesmo autor define a intenção do fotógrafo como: “A intenção de eternizar seus conceitos em forma de imagens acessíveis a outros a fim de se eternizar nos outros.”[14]


Chama também atenção para uma análise da fotografia que considere a intenção do fotógrafo e seu embate com as possibilidades da câmera ou do aparelho. Para isso, ele considera os canais de veiculação de tais fotografias e enfatiza que uma crítica indicadora dos canais propagadores das idéias traduzidas em imagens, sejam elas de caráter político, agencial, galerístico ou outros, contribuiria para uma receptividade crítica por parte do espectador.


Um exemplo cotidiano está na maneira como geralmente, consumimos as imagens fotojornalísticas. Visualizamos imagens, estabelecemos relações e nos dirigimos aos textos referenciais através do filtro dessas imagens, na maior parte das vezes ilustrativas, como se as imagens nos preparassem a posteriori para a leitura textual.


A relação banal que estabelecemos hoje com as imagens fotográficas, nos leva a crer que podemos fazer com elas o que bem entendermos e muitas vezes nos apropriamos dessas imagens como se nos apropriássemos do fato que elas representam em uma realidade específica. Nos sentimos no direito de descartarmos ou as jogarmos fora sem a menor reflexão no que diz respeito à sua funcionalidade ou importância como elemento comunicativo.


Diariamente somos expostos a uma quantidade agressiva de imagens. Tal fato nos torna insensíveis e cegos a muitos destes estímulos, o que faz parte inclusive, de um mecanismo de defesa de nossa mente. Contudo, esse mecanismo, não nos torna “imunes” a essa poluição visual, pois as mensagens subliminares invadem nosso subconsciente definindo maneiras de ser e de agir que influenciam nos costumes sociais, que por sua vez influenciaram na estética fotográfica e darão continuidade ao ciclo vicioso que mudará progressivamente com o advento de outras modas, estéticas e tecnologias[15].


Segundo FLUSSER, uma filosofia da fotografia contribuiria para a contestação desse ciclo e de seus elementos constitutivos. Faz uma crítica contra a robotização da humanidade produzida com a contribuição massiva do universo fotográfico e cita inúmeros exemplos que vão desde expressões pessoais e coletivas até pensamentos e sentimentos das pessoas em nosso mundo, e enfatiza:

Estar no universo fotográfico implica viver, conhecer, valorar e agir em função de fotografias. (...) Vivenciar passa a ser recombinar constantemente experiências vividas através de fotografias. Conhecer passa a ser elaborar colagens fotográficas para se ter “visão de mundo”. Valorar passa a ser escolher determinadas fotografias como modelos de comportamento, recusando outras. Agir passa a ser comportar-se de acordo com a escolha. Tal forma de existência passa a ser quanticamente analisável.[16]


Assim, desvendar o jogo dos aparelhos é também considerar a intencionalidade do fotógrafo e das empresas financiadoras da produção fotográfica.
No último capítulo do ensaio ele define a fotografia como:

Imagem produzida e distribuída automaticamente no decorrer de um jogo programado, que se dá ao acaso que se torna necessidade, cuja informação simbólica, em sua superfície, programa o receptor para um comportamento mágico.[17]

E sugere que, tal afirmativa, sirva como ponto de partida e de contestação para uma filosofia da fotografia, que tenha caráter libertador, revolucionário da sociedade na medida em que desmistifica o universo fotográfico[18] e o diferencia da realidade.


KOSSOY expressa muitas idéias em concordância com os pensamentos de FLUSSER e SONTAG, apresentando-as segundo a ótica de um historiador, que utiliza a imagem fotográfica como fonte de análise para a busca de uma maior compreensão dos fatos históricos. Portanto, desenvolve e sistematiza uma metodologia que visa contribuir com outros pesquisadores no que tange a percepção da fotografia por uma ótica histórica, enquanto FLUSSER o faz de maneira filosófica e SONTAG opera uma crítica sociológica.


Cabe aqui ressaltar que, o enfoque deste historiador, parte sobretudo, da análise das imagens produzidas nos séculos XIX e XX e que, segundo ele, as variantes encontram-se bem delimitadas em determinados espaços e tempos específicos, que apresentarão semelhanças características de tais períodos históricos[19] e que pudemos aplicar às análises de nossa pesquisa.


Divide a análise fotográfica em dois aspectos definidos como iconográficos e iconológicos. A análise iconográfica, segundo ele, tem o intuito de detalhar sistematicamente os elementos icônicos da imagem; prevalecendo o aspecto literal e descritivo dela acrescido da contextualização do assunto registrado em um determinado espaço e tempo, bem como sua correta identificação.[20]


A análise iconológica fica a cargo da interpretação, cujo intuito é atingir o significado intrínseco da imagem produzida. Para tanto faz-se necessário compreender o momento histórico retratado a fim de refletir acerca dos elementos encontrados no conteúdo iconográfico.
O autor propõe para essa análise iconológica, uma análise metódica que buscaremos sintetizar a seguir, com o intuito de ampliarmos o conhecimento dos recursos que podemos lançar mão ao ler e interpretar a imagem fotográfica.


Apesar da incapacidade da fotografia de garantir a fidedignidade dos fatos representados, ela goza, ainda hoje, do status de confirmar a existência de determinados elementos e fatos. Ainda que o advento das fotomontagens e simulações da fotografia digital tenha comprovado a capacidade de simulação e falseamento da realidade e que, com o atual avanço tecnológico, essas possibilidades tornaram-se por um lado, explícitas e facilitadas tecnicamente, sabemos que os processos de manipulação da imagem, são produzidos, através da utilização de retoques e fotomontagens,[21] desde o século XIX.


A intencionalidade da obra também é relacionada pelo autor com a intencionalidade do artista, sendo que ambos devem ser levados em conta e investigados através da análise comparativa de outros trabalhos do mesmo autor e seus contemporâneos, bem como sua biografia, a fim de garantir a fidedignidade do conteúdo de uma fonte.


As atitudes do fotógrafo, do contratante (se houver), da instituição publicadora (se houver) e as reações dos receptores também são indícios que agregam valor à investigação acerca da intencionalidade e conteúdo da imagem. Isso independe de publicação contemporânea ao período em que a obra foi produzida ou posterior e independente da reação de espectadores contemporâneos à época em que a imagem foi produzida ou também posterior, ou seja, determinada obra, representada em sua publicação original terá um determinado valor agregado, contudo, a mesma obra, se publicada posteriormente, terá um outro valor de análise incluído, que aprofundará sua observação quanto à outros aspectos específicos, inclusive a maneira como o público reagiu a ela nas diferentes publicações.


Daí a importância de se refletir em todas as possibilidades manipulativas a que a imagem esteve sujeita. São igualmente importantes, as interpretações de todos esses sujeitos promotores[22] do conceito da imagem desde o momento em que ela é concebida como idéia, passando pelo momento em que foi materializada iconograficamente, até o momento de sua veiculação ou fruição pelo espectador.[23]


A seleção do fotógrafo constituiria-se numa primeira manipulação/interpretação[24] da realidade, seja ela premeditada ou ingênua. Considerando as sucessivas etapas de sua materialização no laboratório, da edição e da publicação, como possibilidades de interferências estéticas, técnicas e ideológicas de igual importância.


A fotografia em si é imbuída de valores que definirão a atitude, consciente ou inconsciente, dos sujeitos fotografados que se interpõem ao aparelho. Tornando até mesmo um olhar, elemento revelador de uma síntese sociológica. O autor define um destes poderosos fatores como uma capacidade da fotografia, de idealizar uma possível consagração ou perpetuação do fotografado frente a um futuro histórico, do qual não fará parte, a não ser pela perpetuação de sua imagem fotográfica que representará sua memória aos seus predecessores. E que revelam posturas e poses que podem ser encontradas em álbuns de família, desde o século XIX e que são capazes de caracterizar todo um complexo de relações sociológicas inerentes aos períodos históricos em que foram produzidas. Neste ponto, KOSSOY, cita as influências dos estudos de Gisele Freund e Susan Sontag em suas reflexões e defende o estudo da sociologia como auxiliar no estudo da percepção da imagem fotográfica.[25]


SONTAG delimita as fronteiras entre o conhecimento fotográfico e o conhecimento de mundo e realidade, explicitando a incapacidade da imagem fotográfica de dar conta da realidade como um todo, ou seja, de dar conta da realidade como fato traduzido em imagem, uma vez que, segundo ela a fotografia “jamais conseguirá ser um conhecimento ético ou político”[26] e afirma:

A fotografia dá a entender que conhecemos um mundo se o aceitamos tal como a câmera o registra. Nunca se compreende nada a partir de uma foto... A compreensão se baseia no funcionamento. E o funcionamento se dá no tempo e deve ser explicado no tempo. Só o que narra pode levar-nos a compreender. [27]


Defende suas idéias, através de uma crítica à fotografia como um objeto de consumo eficaz do capitalismo:

A necessidade de confirmar a realidade e de realçar a experiência por meio de fotos é um consumismo estético em que todos hoje estão viciados. As sociedades industriais transformam seus cidadãos em dependentes de imagens, é a mais irresistível forma de poluição mental.[28]

Acusa ainda que, tal fato, costuma favorecer o falseamento de realidades que só podem ser compreendidas realmente, pelos entes que sofrem as ações diretas de tais meios representados, ou seja, entes que vivenciam as realidades representadas fotograficamente em seu cotidiano e que, mesmo tais sujeitos, não teriam o poder de abarcar toda uma realidade, apenas por meio da fotografia, uma vez que a realidade é muito mais complexa que a sua própria representação. Uma seqüência narrativa de imagens fotográficas poderia nos trazer uma idéia de apreensão e compreensão de uma dada realidade que, segundo a autora constitui-se em uma ilusão de apropriação dos fatos. Mas na verdade não passa de uma apropriação de imagens ou idéias, instituídas em tais imagens. Assim, esta ilusão pode ser produzida por uma seqüência de fotos que muitas vezes são confundidas como uma seqüência de fatos. O mesmo pode ocorrer com a visualização ou, segundo a autora, apropriação de uma única imagem fotográfica e aí a questão fica ainda mais complexa, uma vez que, uma única imagem não pode resumir todo um conjunto complexo de acontecimentos reais.[29]


Assim, a onipresença das fotos produziria um efeito incalculável na sensibilidade ética de nossa sociedade. Modificando as formas de ser e estar no mundo e inclusive as relações entre os indivíduos. Reforçando a crítica a um sistema político globalizado que estimula a criação de uma realidade falseada: “Ao munir este mundo já abarrotado, de uma duplicata do mundo feita de imagens, a fotografia nos faz sentir que o mundo é mais acessível do que é na realidade.”[30]


Levando em conta as idéias até então apresentadas, iniciaremos no tópico à seguir, uma análise de obras, que evidenciará a apreensão de conceitos fundamentais para especulações à cerca das imagens fotográficas e que podem servir como ponto de partida para estudos posteriores.


A execução de entrevistas é uma outra alternativa que agrega informações valiosas à pesquisa. No caso deste trabalho, utilizamos como referência, os depoimentos de Rosângela Rennó encontrados em livros, onde pudemos refletir sobre alguns aspectos de seu processo criativo.


Contudo, é preciso levar em conta que, quando elegemos um objeto de análise precisamos escolher a abordagem crítica e investigativa de acordo com os objetivos que desejamos atingir. No presente trabalho, procuramos ilustrar através da obra de Rosângela Rennó algumas possibilidades de leitura, sabendo que esta poderia ser aprofundada mediante a seleção de outros objetivos segundo determinados aspectos eleitos como relevantes neste processo.


Cabe aqui ressaltar, que a abordagem do livro apresenta ao público, estudantes de arte, apreciadores ou pesquisadores uma introdução ao trabalho da artista, segundo objetivos previamente traçados pela editora, organizadores e tipo de publicação a que se refere o que introduz nesses textos características específicas.


[1] Idem, 2001, p. 133.
[2] Op. Cit. 2001, p. 137.
[3] Cf. BARTHES, Roland. Rethoric of image. Apud. INNIS. Robert E. (org.) Semiotics. An Introductory Anthology. Bloomington: Midland Book, Indiana University Press, 1985.

[4] Cf. FLUSSER, Vilém. A filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002; 1ª ed. 1983, p.10.
[5] Op. Cit., p. 78
[6] Tal expressão “tem a vantagem de designar tanto a natureza quanto a forma das produções da indústria cultural (ou seja, a cultura) e seu modo de produção e distribuição (ou seja, tecnologias e indústrias da mídia). Com isso evitam-se termos ideológicos como “cultura de massa” e “cultura popular” e se chama atenção para o circuito de produção, distribuição e recepção por meio do qual a cultura da mídia é produzida, distribuída e consumida.” E significa dizer que “vivemos em mundo no qual a mídia domina o lazer e a cultura. Ela é portanto a forma dominante e o lugar da cultura nas sociedades contemporâneas.” Para entender melhor a utilização da expressão “cultura da mídia” (ver KELLNER, 2001, p.52).


[7] Cf. FLUSSER, Vilém. A filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002; 1ª ed. 1983, p.10.
[8] Op. Cit., p.23;
[9] Op.Cit, p. 24;
[10] Ver nota número 5 do presente texto.
[11] Entende-se aqui por circuito da arte os espaços galerísticos e museológicos que definem o público expositor por critérios próprios inerentes a um conjunto de idéias no que se refere à arte contemporânea e suas especificidades.
[12] SONTAG, Susan. Ensaios sobre fotografia. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 195;
[13] Op. Cit., p. 32;
[14] Op. Cit., p. 41;
[15] Op. Cit. 1983, p.62.

[16] Op. Cit., p. 66;
[17] Op. Cit., p. 71;
[18] Idem, p. 76
[19] Ibid. p. 105
[20] Op. Cit., 2001, p. 95.
[21] Op. Cit. 2001, p. 104.
[22] Denomino como sujeitos promotores, as instâncias que agregam intencionalidade à imagem e citadas no parágrafo anterior, a partir das idéias formuladas por KOSSOY.
[23] Ibid. p. 106
[24] KOSSOY, Boris. Fotografia & História. 2ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
[25] Ibid. p. 110
[26] Ibid. p. 195
[27] SONTAG, Susan. Ensaios sobre fotografia. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 195.
[28] Op. Cit., p. 168.
[29] Coloco aqui como real a imagem capturada pela câmera num dado espaço e momento, tendo em vista que a fotografia é um simulacro.
[30] Op. Cit., p. 195.